DÚVIDA  METÓDICA  E EVIDÊNCIA EM  DESCARTES

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Trabalhos de Sociologia / Filosofia

 DÚVIDA  METÓDICA E EVIDÊNCIA EM  DESCARTES

 As obras de René Descartes, que revolucionaram o sistema filosófico e marcaram o início da nova perspectiva para o conhecimento moderno, devem ser lidas não só em si mesmas, mas devem também ser enquadradas  e comparadas com a perspectiva escolástica vigente quando elas foram pensadas e escritas para, só então, entender sua grandeza .

 

Embora Descartes tenha terminado seus estudos num colégio jesuítico renomado chamado  La Flèche, concluiu que  todo aprendizado lá adquirido  foi  inútil  do ponto de vista do conhecimento : apesar de as línguas serem indispensáveis no conhecimento dos valiosos livros antigos, já havia se dedicado o suficiente a elas; a História , se lida com prudência, poderia  ser útil na formação pessoal, mas seria substituível por opiniões equivalentes, por viajar. A poesia e a eloqüência têm suas belezas, mas são finezas da mente e desprovidas de raciocínio ; a matemática é exata em seus raciocínios, mas sua utilidade não é evidente e o saber vale por sua aplicação ; a teologia se propunha a abrir caminhos  para o céu mas  para entendê-las era necessário “ser mais do que homem ”(1). Quanto à filosofia , em toda sua história  havia conquistado verdades não universais , somente verdades particulares e prováveis; e isso tinha conseqüências nas demais ciências , que tinham a filosofia como base e eram, portanto, tão incertas quanto ela .

 

Descartes decidiu, então, “não procurar outra ciência senão aquela  que pudesse achar em si próprio ou no imenso livro do mundo” (2) esperando distinguir o verdadeiro do falso com clareza e distinção, não se fundamentando nos costumes pois eles são tão variáveis quanto as opiniões; que são idéias isoladas desprovidas de fundamentação em  argumentos  sólidos.  Ele  se  propõe, com isso a

 

 

(1)Discurso sobre o Método p.16 Hemus, 1975

(2) Discurso sobre o Método p.17 Hemus, 1975

nada menos que reformular as bases da ciência. Para Descartes, uma idéia clara  é aquela que se apresenta imediatamente ao intelecto  sem ser guiada pelos sentidos e a distinção implica em possuir intrinsecamente todas as propriedades e características que permitem diferenciá-las de todas as outras idéias; o que não deixa de ser um maior grau de clareza .

 

A revolução cartesiana consistiu em romper com o realismo , que considerava as idéias como representações,  reflexos  do  Mundo  que  eram  levadas  até  a mente unicamente através dos sentidos. Descartes, porém, parte não das coisas externas ao intelecto como os realistas escolásticos, mas sim da subjetividade, que considera primeiro as idéias de dentro do intelecto para, a  partir  delas  e seguindo   um  método   rigoroso,  chegar  à  prova   de   que   as   coisas    que percebemos  existem  realmente  fora  de  nós .

 

Assim, com maturidade, depois de entender que cada povo se vê como encarnação do universal , aprendeu a não crer fielmente em tudo , a não se curvar perante o que haviam inculcado nele . Aprendeu a liberdade interior, a se livrar de preconceitos e tudo que impede o exercício da razão. Decide, então, criar um método “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”(3), que antecede o exercício da dúvida e visa possibilitar ao ser humano descobrir todas as verdades possíveis, todas as evidências. Um percurso perigoso não aconselhável para todos , comparado a um mergulho no oceano que deve ser feito uma só vez na vida: precisa-se firmar os pés no chão retornando pelas mesmas camadas de água até a superfície para , só então, aliviar a angústia de não respirar.

 

A dúvida de que trata Descartes não é uma mera dúvida cética, pois os céticos não acreditam que o homem possa chegar a qualquer verdade. É metódica, e não tem caráter existencial visto que esperou-se o momento oportuno para tratar dela; é universal, pois, em princípio, tudo se pode colocar em dúvida; é radical por se tachar de falso tudo que é apenas duvidoso; é hiperbólica  por ser ilimitada; e provisória pelo fato de o método ter a função de saná-la até onde o intelecto humano permitir. Como diz Guéroult em sua obra Descartes selon l’ordre des raisons , para se ter uma certeza absoluta é necessário haver uma dúvida prévia , não excluir nada da dúvida a não ser que ela seja radicalmente impossível e, por fim ,  tratar como provisoriamente falsas todas as coisas passíveis de dúvida .

 

Além dessa técnica de considerar idéias apenas duvidosas como falsas, Descartes adotou uma outra técnica decorrente dessa, que consiste em dividir, de um lado, as idéias indubitáveis, e de outro, todas as demais. Com auxílio dessas duas técnicas, começa a investigar as idéias presentes em sua mente. As primeiras a serem  consideradas como duvidosas são as que têm os sentidos como intermédio. Se os sentidos já o enganaram uma vez, isso pode acontecer novamente. Como justificativa dessa generalização, na Primeira Meditação, recorre ao sonho: durante o sonho tenho sensações  que me parecem tão reais quanto aquelas que tenho em vigília  e,  no  entanto,    consigo  concluir  que estava sonhando e que aquelas sensações não eram reais quando comparo esse estado com o de vigília. Daí decorre a idéia de que eu posso estar sonhando e não saber. Devido a essa dúvida natural não devo, portanto me fiar nos conhecimentos que obtenho a partir de meus sentidos. Dando continuidade ao processo de investigação do espírito, depara-se  com  a matemática, que independe dos sentidos e do estado do espírito e é imutável, pois está somente dentro da mente  . O método científico só poderia, portanto, ter a matemática como base. No entanto, Descartes, dá proporções metafísicas à dúvida colocando até mesmo  a matemática no segundo grupo das idéias, ou seja, no das duvidosas. Assim, o próprio método é colocado em dúvida por causa de sua base matemática através de um artifício chamado Gênio Maligno. Tal  artifício  consiste  em  admitir  a  possibilidade  de um

 

 

(3)            Discurso sobre o Método p.8 Hemus, 1975

deus todo poderoso esconder dele  as verdades matemáticas, que lhe faz crer, por exemplo, que um triângulo tenha sempre três lados toda vez que o concebe. Esse deus  enganar-lhe-ia, far-lhe-ia acreditar em relações matemáticas falsas e impedir-lhe-ia de alcançar a verdade. Como não temos como provar ainda que tal deus não existe, a matemática deve também ser colocada em suspensão .

 

Com tamanha dimensão da dúvida, não restou mais a ser colocado nesse campo. Sem interromper o encadeamento preciso de idéias que vinha sendo desenvolvido, deixa a dúvida e parte em busca da evidência. E esse é justamente o procedimento da obra cartesiana : considerar a dúvida metódica e a evidência  inseparáveis e a primeira como condição e prova da segunda, que,  por sua vez, é condição para aceitar uma visão intelectual plena da verdade.

 

No início da Segunda Meditação, Descartes afirma que precisa, tal qual Arquimedes, de ao menos um ponto fixo, uma verdade indubitável para que, com uma alavanca, pudesse mover o mundo de lugar, ou seja, edificar seu conhecimento. E, partindo da dúvida, chega a esse ponto, à primeira evidência que  se trata de que se duvido, penso e se penso, existo; mesmo que algum Gênio Maligno me engane eu preciso existir para ser enganado .  Essa primeira certeza não é somente externa  à qualquer dúvida mas também clara e distinta.  E se, uma evidência é sempre clara e distinta, quando algo apresentar essas duas características não temos como considerá-la falsa . Assim, temos o critério para se constatar uma verdade ; pode-se, então, começar um caminho de eliminação das dúvidas e constatação de evidências.

 

A Luz natural é a responsável pela nossa capacidade de discernimento. É o que se apresenta de mais perfeito em nós e, se ela não puder nos mostrar o que é claro e distinto e, portanto, verdadeiro, nada mais poderá.

 

O eu pensante, apesar de ser um ponto de partida indispensável, não

destrói a dúvida universal, é uma exceção a ela pois sua existência é somente intelectual e não afirma senão ela mesma. Por  isso, não é suficiente conhecê-lo; devo ainda examinar se não existe nada mais dentro de mim que eu conheça . Além disso, numa primeira análise, Descartes só existe enquanto pensa que existe, ou seja, o que é evidente só é evidente no momento em que é percebido e não existe distinção entre ser e conhecer. 

 

Assim,“ sou uma coisa que pensa” e meus pensamento, sentimentos e emoções são maneiras de pensar que existem ao menos dentro de mim. Deve- se tomar especial cautela, no entanto, com nossos juízos pois é um erro muito comum assumir que nossas idéias são semelhantes aos objetos.  Enquanto as idéias e a vontade se confinam nelas mesmas, os juízos  acrescentam algo a elas por uma mediação e, portanto, estão exposto ao Gênio Maligno.

 

Chega-se a um ponto no qual não há outro procedimento senão verificar se Deus existe e  se é enganador.  Se a razão, por um lado, é o que possibilita conhecer as verdades, por outro, ela não é capaz de se autofundamentar sem um ser absoluto que a sustente e a legitime. Reconhece-se, então, a existência da idéia de um Deus perfeito, onipotente, onisciente, onipresente dentro dele . E, como nos faz concluir a luz natural, a causa deve ter, no mínimo, tanta realidade quanto o efeito ; ou seja; eu, na condição de ser finito e imperfeito, não poderia ter a idéia de um ser perfeito e infinito se ela não tivesse sido inculcada em mim por ele.

 

Uma prova mais sólida é ainda apresentada : assim como um triângulo não iria sê-lo se seus ângulos não somassem 180 graus, Deus não seria perfeito se não existisse já que a perfeição requer existência para ter tal denominação. Em outras palavras, um triângulo pode não existir mas , toda vez que eu o concebo, a soma de seus ângulos internos deve ser igual a de dois retos; da mesma forma que Deus pode não existir mas, toda vez que o concebo, sou obrigado a atribuir-lhe existência.

Com a prova da existência de Deus, deixamos o Cogito para começar a abraçar o mundo exterior por meio de algo que faz, ao mesmo tempo, parte do Cogito e desse mundo exterior a ele, servindo, portanto, como uma ponte, um elo entre eles. Cabe, ainda, evidenciar que temos, pela primeira vez, algo que existe por si só, independente do Cogito; e esta é a principal diferença entre eles: enquanto o Cogito é o próprio pensamento , Deus existe por si só, mesmo sem o pensamento. Mas não basta provar Sua existência, deve-se provar também Sua veracidade, ou seja, que Ele não é enganador e ainda que não é responsável pelos erros humanos .  Daí segue-se a cadeia de raciocínios, inocentando Deus dos erros humanos  até chegar à superfície da última camada de água que é a prova da existência das coisas materiais.                                                                                                                      

 BIBLIOGRAFIA :

 - Descartes, René.- Discurso sobre o Método, Hemus, 1975. Tradução de Torrieri Guimarães
-
Meditações, Abril Cultural- coleção Os pensadores,1973. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr. 
- Gueroult, Martial.
Descartes selon l’ordre des raisons 
- Silva, Franklin Leopoldo e.
Descartes e a Metafísica da Modernidade , Moderna,1993 
- Anotações das aulas da professora Marilena e do professor Moacyr