DÚVIDA METÓDICA E EVIDÊNCIA EM DESCARTES
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Embora
Descartes tenha terminado seus estudos num colégio jesuítico renomado chamado
La Flèche, concluiu que todo
aprendizado lá adquirido foi
inútil do ponto de vista do
conhecimento : apesar de as línguas serem indispensáveis no conhecimento dos
valiosos livros antigos, já havia se dedicado o suficiente a elas; a História
, se lida com prudência, poderia ser
útil na formação pessoal, mas seria substituível por opiniões equivalentes,
por viajar. A poesia e a eloqüência têm suas belezas, mas são finezas da
mente e desprovidas de raciocínio ; a matemática é exata em seus raciocínios,
mas sua utilidade não é evidente e o saber vale por sua aplicação ; a
teologia se propunha a abrir caminhos para
o céu mas para entendê-las era necessário “ser mais do que homem
”(1). Quanto à filosofia , em toda sua história
havia conquistado verdades não universais , somente verdades
particulares e prováveis; e isso tinha conseqüências nas demais ciências ,
que tinham a filosofia como base e eram, portanto, tão incertas quanto ela .
Descartes
decidiu, então, “não procurar outra ciência senão aquela
que pudesse achar em si próprio ou no imenso livro do mundo” (2)
esperando distinguir o verdadeiro do falso com clareza
e distinção, não se fundamentando
nos costumes pois eles são tão variáveis quanto as opiniões; que são idéias
isoladas desprovidas de fundamentação em
argumentos sólidos.
Ele se
propõe, com isso a
(1)Discurso
sobre o Método p.16 Hemus, 1975
(2)
Discurso sobre o Método p.17 Hemus, 1975
nada
menos que reformular as bases da ciência. Para Descartes, uma idéia clara
é aquela que se apresenta imediatamente ao intelecto
sem ser guiada pelos sentidos e a distinção implica em possuir
intrinsecamente todas as propriedades e características que permitem diferenciá-las
de todas as outras idéias; o que não deixa de ser um maior grau de clareza .
A
revolução cartesiana consistiu em romper com o realismo
, que considerava as idéias como representações,
reflexos do
Mundo que
eram levadas
até a mente unicamente
através dos sentidos. Descartes, porém, parte não das coisas externas ao
intelecto como os realistas escolásticos, mas sim da subjetividade,
que considera primeiro as idéias de dentro do intelecto para, a
partir delas
e seguindo um
método rigoroso,
chegar à
prova de
que as
coisas que
percebemos existem
realmente fora
de nós .
Assim,
com maturidade, depois de entender que cada povo se vê como encarnação do
universal , aprendeu a não crer fielmente em tudo , a não se curvar perante o
que haviam inculcado nele . Aprendeu a liberdade interior, a se livrar de
preconceitos e tudo que impede o exercício da razão. Decide, então, criar um
método “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”(3),
que antecede o exercício da dúvida e visa possibilitar ao ser humano descobrir
todas as verdades possíveis, todas as evidências. Um percurso perigoso não
aconselhável para todos , comparado a um mergulho no oceano que deve ser feito
uma só vez na vida: precisa-se firmar os pés no chão retornando pelas mesmas
camadas de água até a superfície para , só então, aliviar a angústia de não
respirar.
A
dúvida de que trata Descartes não é uma mera dúvida cética, pois os céticos
não acreditam que o homem possa chegar a qualquer verdade. É metódica, e não
tem caráter existencial visto que esperou-se o momento oportuno para tratar
dela; é universal, pois, em princípio, tudo se pode colocar em dúvida; é
radical por se tachar de falso tudo que é apenas duvidoso; é hiperbólica
por ser ilimitada; e provisória pelo fato de o método ter a função de
saná-la até onde o intelecto humano permitir. Como diz Guéroult em sua obra Descartes
selon l’ordre des raisons , para se ter uma certeza absoluta é necessário
haver uma dúvida prévia , não excluir nada da dúvida a não ser que ela seja
radicalmente impossível e, por fim , tratar
como provisoriamente falsas todas as coisas passíveis de dúvida .
Além
dessa técnica de considerar idéias apenas duvidosas como falsas, Descartes
adotou uma outra técnica decorrente dessa, que consiste em dividir, de um lado,
as idéias indubitáveis, e de outro, todas as demais. Com auxílio dessas duas
técnicas, começa a investigar as idéias presentes em sua mente. As primeiras
a serem consideradas como duvidosas
são as que têm os sentidos como intermédio. Se os sentidos já o enganaram
uma vez, isso pode acontecer novamente. Como justificativa dessa generalização,
na Primeira Meditação, recorre ao sonho: durante o sonho tenho sensações
que me parecem tão reais quanto aquelas que tenho em vigília
e, no entanto, só
consigo concluir
que estava sonhando e que aquelas sensações não eram reais quando
comparo esse estado com o de vigília. Daí decorre a idéia de que eu posso
estar sonhando e não saber. Devido a essa dúvida natural
não devo, portanto me fiar nos conhecimentos que obtenho a partir de meus sentidos. Dando
continuidade ao processo de investigação do espírito, depara-se
com a matemática, que
independe dos sentidos e do estado do espírito e é imutável, pois está
somente dentro da mente . O método
científico só poderia, portanto, ter a matemática
como base. No entanto, Descartes,
dá proporções metafísicas à dúvida colocando até mesmo a matemática no segundo grupo das idéias, ou seja, no das
duvidosas. Assim, o próprio método é colocado em dúvida por causa de sua base matemática através de um artifício
chamado Gênio Maligno. Tal artifício
consiste em
admitir a
possibilidade de um
(3)
Discurso sobre o Método p.8 Hemus, 1975
No
início da Segunda Meditação, Descartes afirma que precisa, tal qual
Arquimedes, de ao menos um ponto fixo, uma verdade indubitável para que, com
uma alavanca, pudesse mover o mundo de lugar, ou seja, edificar seu
conhecimento. E, partindo da dúvida, chega a esse ponto, à primeira evidência
que se trata de que se
duvido, penso e se penso, existo;
mesmo que algum Gênio Maligno
me
engane eu preciso existir para ser enganado .
Essa primeira certeza não é somente externa à qualquer dúvida mas também clara e distinta.
E se, uma evidência é sempre clara e distinta, quando algo apresentar
essas duas características não temos como considerá-la falsa . Assim, temos o
critério para se constatar uma verdade ; pode-se, então, começar um caminho
de eliminação das dúvidas e constatação de evidências.
A
Luz natural
é a responsável pela nossa capacidade de discernimento. É o que se apresenta
de mais perfeito em nós e, se ela não puder nos mostrar o que é claro e
distinto e, portanto, verdadeiro, nada mais poderá.
O
eu pensante,
apesar de ser um ponto de partida indispensável, não
destrói
a dúvida universal, é uma exceção a ela pois sua existência é somente
intelectual e não afirma senão ela mesma. Por
isso, não é suficiente conhecê-lo; devo ainda examinar se não existe
nada mais dentro de mim que eu conheça . Além disso, numa primeira análise,
Descartes só existe enquanto pensa que existe, ou seja, o que é evidente só
é evidente no momento em que é percebido e não existe distinção entre ser e
conhecer.
Assim,“
sou uma coisa que pensa” e meus pensamento, sentimentos e emoções são
maneiras de pensar que existem ao menos dentro de mim. Deve- se tomar especial
cautela, no entanto, com nossos juízos pois é um erro muito comum assumir que
nossas idéias são semelhantes aos objetos.
Enquanto as idéias e a vontade se confinam nelas mesmas, os juízos
acrescentam algo a elas por uma mediação e, portanto, estão exposto ao
Gênio Maligno.
Chega-se
a um ponto no qual não há outro procedimento senão verificar se Deus existe e
se é enganador. Se a razão, por um lado, é o que possibilita conhecer as
verdades, por outro, ela não é capaz de se autofundamentar sem um ser absoluto
que a sustente e a legitime. Reconhece-se, então, a existência da idéia de um
Deus perfeito, onipotente, onisciente, onipresente dentro dele . E, como nos faz
concluir a luz natural, a causa deve
ter, no mínimo, tanta realidade quanto o efeito ; ou seja; eu, na condição de
ser finito e imperfeito, não poderia ter a idéia de um ser perfeito e infinito
se ela não tivesse sido inculcada em mim por ele.
Uma prova mais sólida é ainda apresentada : assim como um triângulo não iria sê-lo se seus ângulos não somassem 180 graus, Deus não seria perfeito se não existisse já que a perfeição requer existência para ter tal denominação. Em outras palavras, um triângulo pode não existir mas , toda vez que eu o concebo, a soma de seus ângulos internos deve ser igual a de dois retos; da mesma forma que Deus pode não existir mas, toda vez que o concebo, sou obrigado a atribuir-lhe existência.
Com
a prova da existência de Deus, deixamos o Cogito para começar a abraçar o
mundo exterior por meio de algo que faz, ao mesmo tempo, parte do Cogito e desse
mundo exterior a ele, servindo, portanto, como uma ponte, um elo entre eles.
Cabe, ainda, evidenciar que temos, pela primeira vez, algo que existe por si só,
independente do Cogito; e esta é a principal diferença entre eles: enquanto o
Cogito é o próprio pensamento , Deus existe por si só, mesmo sem o
pensamento. Mas não basta provar Sua existência, deve-se provar também Sua
veracidade, ou seja, que Ele não é enganador e ainda que não é responsável
pelos erros humanos . Daí segue-se
a cadeia de raciocínios, inocentando Deus dos erros humanos
até chegar à superfície da última camada de água que é a prova da
existência das coisas materiais.
BIBLIOGRAFIA
:
-
Descartes, René.- Discurso
sobre o Método,
Hemus, 1975. Tradução de Torrieri Guimarães
- Meditações,
Abril Cultural- coleção Os
pensadores,1973.
Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.
- Gueroult, Martial. Descartes
selon l’ordre des raisons
- Silva, Franklin Leopoldo e. Descartes
e a Metafísica da Modernidade
, Moderna,1993
- Anotações das aulas da professora Marilena e do professor Moacyr