Alguma Poesia
Machado de Assis


Biografia

Poeta, romancista, novelista, contista, cronista, dramaturgo, ensaísta e
crítico, nasceu e morreu na cidade do Rio de Janeiro, respectivamente, em
21/06/1839 e 29/09/1908. Sua obra tem raízes nas tradições da cultura européia

e transcende a influência das escolas literárias nacionais.

Filho de um pintor de casas mestiço de negro e português, após a morte da mãe
foi criado pela madrasta, também mestiça. Adoentado, epiléptico, gago e de
figura trivial, encontrou emprego como aprendiz de tipógrafo aos 17 anos de
idade, começando a escrever durante seu tempo livre. Em breve, começou a
publicar obras românticas. Colaborou regularmente na imprensa carioca.

Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista,
quando desenvolveu seu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O
domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista
e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido
cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos. A
galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da
observação psicológica.

Em 1869 Machado era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido,
confortavelmente amparado por um cargo público e num feliz casamento com uma
culta senhora, Carolina Augusta Xavier de Novais. Naquele ano, a doença fê-lo
afastar-se temporariamente de suas atividades e, na sua volta, publica um livro
extremamente original, pouco convencional para o estilo da época - "Memórias
Póstumas de Brás Cubas" (1881) -, que, juntamente com "O Mulato" (de Aluísio de Azevedo),

constitui o marco do realismo na literatura brasileira. Das "Memórias" provém aquele pensamento do personagem que julga-se feliz por não ter deixado descendentes que perpetuassem o legado da miséria humana.

Publicou ainda mais dois romances de sua famosa tríade, "Quincas Borba" (1891) e
"Dom Casmurro" (1899). Estes livros, ao lado de suas histórias curtas
("Histórias da Meia Noite", "Papéis Avulsos", "Histórias Românticas", "Histórias
sem Data", "Várias Histórias", "Páginas Recolhidas", "Relíquias de Casa Velha",
"Contos Fluminenses", "Crônicas") fizeram sua fama como escritor.

Urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou questões sociais
como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe do
nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não
houvesse outro lugar. O mundo natural virtualmente inexiste em seu trabalho.
Escreve com profundo pessimismo e desilusão que seriam insuportáveis se não
estivessem disfarçados sob o manto da ironia e do humor inteligente. Foi o
principal responsável pela fundação da Academia Brasileira de Letras e seu
primeiro presidente; permaneceu nesta qualidade até sua morte.

O Machado poeta é menos conhecido e apreciado, apesar de sua primeira
manifestação literária ter sido feita justamente com uma poesia ("Ela",
publicado na "Marmota Fluminense"), aos 16 anos de idade.
Publicou quatro livros de poesia. "Crisálidas" (1864) e "Falenas" (1870) mostram
nítida influência de Castro Alves, com alguma pregação dos ideais de liberdade.
Em "Americanas" (1875) as influências alencarinas são patentes, e o próprio
Machado vale-se do recurso da metalinguagem externa em uma importante
advertência inicial de que o assunto do livro não era unicamente os aborígenes
brasileiros. "Ocidentais" (1901) já mostra elementos do realismo: ironia,
niilismo, recuperação do tempo perdido.

É a referência clássica da literatura brasileira, considerado o maior escritor
do país e um mestre da língua.


A Mosca Azul

Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

 
Flor da Mocidade

Eu conheço a mais bela flor;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor.
Tem do céu a serena cor,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor,
És tu, rosa da mocidade.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive às vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta já nada val.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.
 
 
 
 
Livros e Flores

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Menina e Moça
A Ernesto Cibrão

Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!
 
Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


A um Legista

Tu foges à cidade?
Feliz amigo! Vão
Contigo a liberdade,
A vida e o coração.

A estância que te espera
É feita para o amor
Do sol com a primavera,
No seio de uma flor.

Do paço de verdura
Transpõe-me esses umbrais;
Contempla a arquitetura
Dos verdes palmeirais.

Esquece o ardor funesto
Da vida cortesã;
Mais val que o teu Digesto
A rosa da manhã.

Rosa . . . que se enamora
Do amante colibri,
E desde a luz da aurora
Os seios lhe abre e ri.

Mas Zéfiro brejeiro
Opõe ao beija-flor
Embargos de terceiro
Senhor e possuidor.

Quer este possuí-la,
Também o outro a quer.
A pobre flor vacila,
Não sabe a que atender.

O sol, juiz tão grave
Como o melhor doutor,
Condena a brisa e a ave
Aos ósculos da flor.

Zéfiro ouve e apela.
Apela o colibri.
No entanto, a flor singela
Com ambos folga e ri.


Tal a formosa dama
Entre dois fogos, quer
Aproveitar a chama . . .
Rosa, tu és mulher!

Respira aqueles ares,
Amigo. Deita ao chão
Os tédios e os pesares.
Revive. O coração

É como o passarinho,
Que deixa sem cessar
A maciez do ninho
Pela amplidão do ar.

Pudesse eu ir contigo,
Gozar contigo a luz;
Sorver ao pé do amigo
Vida melhor e a flux!

Ir escrever nos campos,
Nas folhas dos rosais,
E à luz dos pirilampos,
Ó Flora, os teus jornais!

Da estrela que mais brilha
Tirar um raio, e então
Fazer a gazetilha
Da imensa solidão.

Vai tu, que podes. Deixa
Os que não podem ir,
Soltar a inútil queixa.
Mudar é reflorir.
 
 
 
Uma Criatura
 
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois esta criatura está em toda a obra;
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
 

Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
 

No Alto
 
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
 
 
 
A uma Senhora que me Pediu Versos

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
 
 
 

Suave Mari Magno

Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.
 

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:


"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:


"Mísera!  Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?"...
 
 
 
Carolina
 
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
1906
 
 
 
Relíquia Íntima

Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado

Visio
 
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam . . .
Os olhos meio-cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam . . .
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiram . . .

Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes
Os teus lábios sequiosos,
Frios trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes . . .
Depois . . . depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei . . . silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.
E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não vê se a imagem presente
Foi a imagem do passado.
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.
Inda assim, embora sonho,
Mas sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!
 

Stella

Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.
Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora
À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.
Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.
Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?
Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.
Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera.
Em lágrimas a pares.
Do amor silencioso.
Místico, doce, puro,
Dos sonhos do futuro,
Da paz, do etéreo gozo,
De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.
A virgem da manhã
Já todo o céu domina . . .
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.


Horas Vivas

Noite: abrem-se as flores . . .
Que esplendores!
Cíntia sonha seus amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.
Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.

— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!


— "Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.

— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"
 

O Dilúvio
(1863)
E caiu a chuva sobre a terra
quarenta dias e quarenta noites
Gênesis — c. VII, v. 12

Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!

Só, como a idéia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além . . .
Lá vai! Em torno angústias,
Clamores, lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela aos escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço; o vínculo
Da nova creação.

Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Volando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.
 
 

Os Dois Horizontes
A M. Ferreira Guimarães
(1863)

Dous horizonte fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo  das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dous horizontes fecham nossa vida
 
FIM


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